quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O SAMBA COMO LUGAR DA DIFERENÇA: UMA BREVE ABORDAGEM DO SAMBA DE NEI LOPES.





Adailson Luis Lopes Rodrigues
Pós-Graduando do Curso de Pós-graduação em História e Cultura Afro-brasileira do IERGS – UNIASSELVI
Professor de História da Rede Pública Estadual do RS em Alvorada
Professor Ms. Arilson dos Santos Rodrigues – Cultura Afro-descendente
25/102011






RESUMO
Este artigo pretende apresentar o samba como uma forma de resistência e valorização da historicidade e cultura afro-brasileira, a partir da interpretação de três sambas do sambista, compositor e pesquisador Nei Lopes, sobre africanidade, Essa possibilidade surgiu nas discussões da disciplina de Cultura afro-descendente do meu curso de Pós-graduação em História e Cultura Afro-Descendente, acerca dos conceitos de hibridismo e cultura propostos pelo pensador indiano Homi Bhabha1. Acredito que o samba é um lugar de resistência, pois, permite que os sujeitos sociais sejam compreendidos fora dos determinismos antagônicos propostos pelas culturas hegemônicas. O samba vai além, torna-se um lugar da diferença.


Palavras-chave: hibridismo cultural, resistência, diferença,, samba, história, africanidade hegemonia.








A partir de pesquisas em diferentes campos de conhecimento, a historiografia contemporânea vem produzindo trabalhos que se apoiam em conceitos que vão além das bipolarizações deterministas. Homi Bhabha, nos apresenta o conceito de hibridismo , como forma de compreensão dos processos sociais, políticos e culturais produzidos historicamente,




“(...) um lugar de hibridismo, para se falar de forma figurada, onde a construção de um objeto político que é novo, nem um e nem outro, aliena , de modo adequado nossas expectativas políticas, necessariamente mudando as próprias formas de nosso reconhecimento do momento da política,”(Bhabha, 1998, p.51)

O hibridismo de Bhabha e uma ferramenta imprescindível para se construir um conhecimento em que as culturas invisibilizadas sejam (re) significadas a partir do lugar onde a diferença revele uma forma de resistência. No caso da cultura afro-brasileira, o samba pode vir a ser um desses lugares2.
O pensamento de Bhabha articula-se de uma forma que nos permite um deslocamento dos sentidos contraditórios, assim, surgem novos campos possíveis de interpretação do sujeito histórico, um sujeito que para Hall (2005, p. 10-14) é constituído não apenas por uma identidade, mas por várias. Esse contexto que é produzido pelo cotidiano e suas manifestações, é moldado pelo pesquisador. Lugares onde a diferença é um instrumento de construção identitária.
O universo discursivo3 que aqui é interpretado a partir de três composições do sambistas Nei Lopes, está relacionado as concepções de Fiorin (2004, apud CONFORTE. 2008, p. 25), que diz: “(...)O Universo discursivo é um conjunto de formações discursivas de todos os tipos que interagem numa dada conjuntura; é constituído por muitos campos discursivos: político, religioso, filosófico, etc”. Analisando as composições a partir dessa concepção acredito que é possível encontrar o lugar da diferença no samba.
Foi buscando o lugar onde ocorre a diferença e, portanto, a resistência que procurei articular este trabalho. Para isso, proponho um questionamento: como o samba , neste caso, a partir das composições do sambista Nei Lopes, enquanto patrimônio cultural brasileiro, pode ser visto como um lugar da diferença?





O Sambista

Nei Lopes nasceu na periferia do Rio de Janeiro em Irajá. Ao longo de sua trajetória se tornou compositor, pesquisador, escritor e cantor, acumulando um grande conhecimento sobre africanidade.
Na década de 1960 formou-se em Direito, foi frequentador da casa de Tia Dina e, em meio aos tambores conheceu a religião afro-brasileira. Integrou-se a ala de compositores da velha guarda do Salgueiro.
Foi autor de belíssimos poemas sobre a negritude e publicou livros importantes “O samba na realidade” (1981), “Islamismo e negritude” (1982), “Bantos, Malês e Identidade Negra” (1988) e “O negro no Rio de Janeiro e sua tradição cultural”. Em 2004 publicou “Enciclopédia da Diáspora Africana”, que se tornou um dos melhores trabalhos sobre África e Africanidades no Brasil.
Suas composições fizeram sucesso nas vozes de cantores como Zeca Pagodinho, Beth Carvalho, Alcione e Clara Nunes.
O samba de Nei Lopes é resultado de sua vivência e estudos sobre africanidade. Nesse sentido, este trabalho torna-se, não apenas uma abordagem que pretende dar lugar ao samba, mas também reconhecer o próprio Nei Lopes como um lugar de resistência.


Origens

As origens do samba remontam expressões culturais, rítmicas, corporais e musicais dos africanos trazidos para o Brasil. Meu objeto de estudo, o samba em sua manifestação musical, foi construído a partir de expressões africanas como a umbigada e as festas dos terreiros de Candomblé. Seja na Bahia, no Rio de Janeiro, ou em Porto Alegre o samba foi assimilando as especificidades regionais e se tornou uma legítima expressão de raízes afro-brasileiras. Sem entrar no mérito se o samba é baiano ou carioca, embora o tema seja desafiador, é no início do século XX que o samba constitui sua estrutura contemporânea 4.
No Rio de Janeiro, o contexto social e cultural no pós-abolição fez do samba uma crônica do cotidiano, onde se estabeleciam os antagonismos da sociedade. Dos terreiros de Candomblé, impulsionados pelos tambores, aos pagodes onde se reuniam os “bambas do partido alto”, ao samba-choro hibridizado pelos músicos das camadas médias urbanas junto aos músicos “do morro”, aos sambas das escolas e blocos carnavalescos, passando por Noel Rosa, Cartola, Dona Ivone Lara e, chegando na atualidade com Nei Lopes, o samba esteve presente na história da sociedade brasileira e traduziu, as identidades negras que também constituíram o Brasil como nação. É que veremos a seguir.


O samba fazendo a diferença


A música é um instrumento que se faz pela oralidade. Para os africanos o passado é reconstituído pela oralidade. Nei Lopes reconhece essa oralidade. Seus sambas são carregados de significados que produzem conhecimento, historicidade , reflexão e crítica. O samba torna-se uma forma de transmitir e ressignificar a identidade. Saltam dos discursos do samba, sujeitos e lugares sociais e históricos que uma determinada historiografia estereotipou a partir da cultura hegemônica a sociedade brasileira. Esses sujeitos se revelam, por exemplo, no samba “Nosso nome resistência” (300 ANOS CANTO BANTO de 1996):

Olha nosso povo aí
Conjugando no presente o verbo resistir
Nossos corpos densos resistindo à opressão
Nossos nervos tensos suportando a humilhação
O olho cresceu, tumbeiro chegou
O couro comeu, o pau roncou
Mas o negro é aroeira
Envergou, mas não quebrou
Preto velho tem mandinga
De amansar feitor
Nega mina tem um dengo
De matar de amor
Palmares, balaios, malês, alfaiates
Fugas, guerrilhas, combates
Mão na cara, dedo em riste
Teatros, fundos de quintal, candomblés,
Blocos, jongos, afoxés
Assim também se resiste
Negritude resplandecente
Consciente a se reconstruir
O nosso nome é resistência
Olha o nosso povo aí.

Os versos do samba nos levam a pensar sobre os processos de negociação e resistência, que se entrelaçam e produzem cultura. “Olha o nosso povo aí/Conjugando no presente o verbo resistir/Nossos corpos densos suportando a humilhação”. Resistência, uma prática que as culturas hegemônicas minimizaram com relação aos africanos. “Preto velho tem mandinga/De amassar feitor”, a religiosidade africana, embora tenha sofrido o preconceito e a discriminação, nos permite entender que, sendo um lugar de negociação de símbolos e representações se faz como resistência, o que Bhabha (1998) apresenta como uma possibilidade de mudança de paradigma. Da mesmo forma que em, “Palmares, balaios, malês, alfaiates, fugas, guerrilhas, combates/ Mão na cara dedo em riste/Teatros, fundos de quintal, candomblés/blocos, jongos e afoxés”, demonstram não somente a dimensão social da resistência dos afro-brasileiros, mas sua dimensão político-cultural negociada.
O Lugar da diferença é produzido a partir da cultura. Segundo Bhabha (1998):
(…) a diferença cultural do qual afirmações da cultura ou sobre a cultura diferenciam, discriminam e autorizam a produção de campos de força, referência, aplicabilidade e capacidade”. Nei Lopes nos mostra. De Palmares, que um é símbolo de resistência à escravidão, passando pelo teatro de negro de Abdias do Nascimento e chegando aos fundos dos quintais, o samba nos revela que o hibridismo da cultura afro-brasileira faz a diferença.


O samba tem seus caminhos para elucidar o cotidiano. Em “Águia de Haia” nos leva a pensar sobre identidades construídas e desconstruídas.

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Saí do baile, rumo de Copacabana
E em pleno Campo de Santana recebi um santo
Quem viu me disse que foi um espanto
Que eu falei coisas meio um tanto ou quanto, sei lá ...
Dizem que eu falava discursando
Com sotaque de baiano intelectual
E de repente, sem ter dó nem piedade
Eu entrei na Faculdade de Direito Nacional
Data vênia, Homo sapiens! Dura Lex sed Lex
In natura, causa mortis, habeas corpus cum jontex!
(In extremis, lato sensus,ad libitum, ad hoc,
Libertas quae será tamen! Delenda est pop-rock!)
Na faculdade, escrevi regras e tratados
Dei lições pro doutorado com muita ciência
Só me chamavam de Vossa Excelência
Me convidaram pra livre-docência, pois é ...
Discursei três horas sem dar pausa
Fui doutor honoris causa e quase fui reitor
Porem, no meio dessa história gloriosa
O caboclo Rui Barbosa de mim desincorporou
Ab origine, spiritu tuum! Ex libris, qüiproquó!
Revertere ad locum! Olha o teu status quo!
(Vade retro, alter ego! Ite dominus missa est
Vôte, persona non grata! Modus in rebus, ô peste!)
E eu que já era um mestre consagrado
Fui então chamado de Doutor Bebum




Esse samba de 2009 é, de certa forma, auto biográfico e, nesse caso, samba e autor se tornam o lugar da diferença. A partir da discrição de uma cena em que ao voltar de uma baile o personagem “recebe” um santo que faz com que aconteça uma inversão social/política/cultural que o impacta. Segundo Certeau (1994, apud DURAN, 2007, P. 119):


(...) o homem ordinário inventa o cotidiano com mil maneiras de caça não autorizada. (…) Essa invenção do cotidiano se dá graças ao que Certeau chama de 'artes de fazer', 'astúcias sutis', 'táticas de resistências' que vão aletrando os objetos e os códigos e estabelecendo uma (re)apropriação do espaço e do uso do jeito de cada um”.

Ao pensarmos sobre o cotidiano percebemos que as culturas hegemônicas produziram lugares e identidades. Na música, novamente autor e obra se confundem para mostrar o hibridismo. Embora Nei Lopes tenha formação acadêmica, em muitos momentos sofreu o preconceito por também ser sambista. A cultura hegemônica constrói lugares sociais. A ironia do samba desconstrói e faz pensar sobre a condição da cultura afro-brasileira como resistência. Por que resistir? Simplesmente pelo fato de o mito da democracia racial no Brasil ainda é forte. É nesse sentido que a cultura negociada e hibrida construída pela africanidade brasileira faz a diferença. O samba, vai além do folclórico, do festivo, da diversão, ganha um papel político, cultural, social e histórico.
As vozes da África tem lugar no samba de Nei Lopes. Em “Ginga Angola”(1996), os lugares e sujeitos da cultura africana são trazidos pela riqueza das palavras de origem afro e a variedade de divindades bantus que traduzem a religiosidade dos africanos (re) constituídas no Brasil.




(refrão)Ginga, Angola! Não chora povo bantu!
Canta, Congo, no jongo do caxambu! ( bis)
Lá nas terras de Matamba
Quando o sol me viu nascer
Minha tia, Sinhá Samba,
Lavou meu camutuê
Com folhinhas de mutamba
Que ganhou de Catendê.
(refrão)
Meu pai é Lembarenganga
Caviungo é meu avô
Sou a paz de Zumbaranda
Flecha de Mutalambô
Sou as águas da Quianda
Sob as cores de Angorô.
A resistência se faz presente novamente, no samba “Noventa anos de abolição”(1980) que Nei Lopes fez em parceria com o compositor Wilson Moreira.
Hoje a festa é nossa
Não temos muito para oferecer
Mas os atabaques vão dobrando
Com toda a alegria de viver.
Festa no Quilombo-
Noventa anos de abolição
Todo mundo unido pelo amor
Não importa a cor
Vale o coração.
Nossa festa hoje é homenagem
À luta contra as injustiças raciais
Que vem de séculos passados
E chega até os dias atuais.
Reverenciamos a memória
Desses bravos que fizeram nossa história:
Zumbi, Licutan e Alumá
Zundu, Luís Sanin e Dandará.
E os quilombolas de hoje em dia
São Candeia” que nos alumia
E hoje nesta festa
Noventa anos de Abolição
Quilombo vem mostrar que a igualdade
O negro vai moldar com a própria mão
E em luta pelo seu lugar ao sol
Não é só bom de samba e futebol.

Neste samba, o tema do fim da escravidão no Brasil e a luta contra a discriminação racial são lembrados. Em um momento que se comemorava os noventa anos do fim da escravidão, o samba chama atenção para o carnaval pela sua diversidade, mas que, ao ser vista com olhos atentos, não é apenas uma representação da cultura, seus sujeitos produzem identidades hibridas
e ações políticas que desconstroem poderes e lugares sociais. Da mesma forma, o samba nos traz os “bravos da história” que ficaram esquecidos pelas culturas hegemônicas, Zumbi, (líder de Palmares), Licutâ (um dos líderes da Revolta dos Malês), são exemplos.




Considerações finais


Ao pensar sobre o presente trabalho fiz um questionamento: Como o samba poderia ser visto como o lugar da diferença? A partir das concepções de Homi Bhabha, como ferramenta de interpretação, acredito que as composições de samba e os sambistas podem sim fazer a diferença quando se trata de repensarmos a sociedade brasileira, O lugar do samba vai além das representações, ele se torna a diferença na essência, pois sua construção se dá a partir de identidades que precisam se fazer ver, ouvir e sentir. A africanidade é (re)constituída pelo samba e os sujeitos se tornam históricos, sociais, políticos e culturais. A história verte como uma forma de ir além do que meramente vemos e a cultura traduz esse conceito. Como nos diz Claude Lévi-Strauss,



cada cultura desenvolve-se graças a seus intercâmbios com outras culturas, mas é necessário que cada uma oponha certa resistência a isso, caso contrário, logo não terá nada que seja propriedade particular para trocar. A ausência e o excesso de comunicação tem um e outro, seus riscos (apud NOGUEIRA. 2006, p.13).

Obviamente este trabalho é apenas uma breve interpretação acerca das possibilidades de que a cultura pode estabelecer com outras áreas do conehcimento, principalmente o conhecimento histórico. Ao trazer o Samba como uma forma de interpretação da sociedade utilizando as composições de Nei Lopes, acredito que posso contribuir para o debate e valorização da cultura afro-brasileira. Com diz Nei lopes: O Samba é Sábio.






Referências

BHABHA. Homi K. O local da Cultura. Tradução de Myriam Ávila, Eliana de Lima Reis, Glaucia Renate Gonçalves – Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998


CONFORTE. André. O INTERDISCURSO NO SAMBA. Círculo fluminense de estudos filológicos e linguísticos, Rio de Janeiro. Disponível em: http://www.filologia.org.br/xicnlf/8/o_interdiscurso_no_samba.pdf. Acesso em 15 de outubro de 2011.


DURAN, Marília Claret Geraes. Maneiras de pensar o cotidiano com Michel de Certeau. Artigo publicado no site: www2.pucpr.br/reol/index.php/DIALOGO. Setembro e Dezembro de 2007. Acesso em 20 de outubro de 2011.


HALL. Stuart. A identidade Cultural na Pós-modernidade. Rio de Janeiro:Ed. DP&A Editora, p.10-14.


NOGUEIRA, Nara Natércia, O Samba: cantando a história do Brasil. Artigo publicado no Site www.palmares.gov.br, junho de 2006. Disponível no site: http://www.palmares.gov.br/wp-content/uploads/2010/11/O-SAMBA-cantando-a-hist%C3%B3r-ia-do-Br-asil.pdf. Acesso em 20 de Outubro de 2011.


OLIVEIRA, Anabela Diniz Branco de. Dicionário de Metalinguagens. São Paulo, Ed:Porto. 2000









1Pensador indiano que desenvolveu a teoria do hibridismo.
2O conceito de lugar se aproxima das concepções de Jeam Claude Passeron. Em “Raciocínio Sociológico, Passeron propõe o lugar não com uma forma cartesiana, mas sim como um lugar social, onde identidade, símbolos e representações podem produzir o lugar social.
3 Termo utilizado no Dicionário de Metalinguagens da Didática.
4O samba, mesmo com a indústria cultural massificante, ainda preserva os “jeitos”de cantar e de tocar, que relembram suas raízes.

segunda-feira, 10 de outubro de 2011

CLUBE DO COZIDO (RJ)


Uma reverênica importante a Velha Guarda da Portela e da Mangueira. Sem dúvida estes senhores e senhoras, mestres do samba, representam um arcabouço histórico e cultural que não pode ser equecido pela sociedade brasileira.

Turma 308 (colégio Castro Alves).